Eduardo Coutinho e o documentário como estudo humano
- Leonardo Bastos
- 12 de mai. de 2017
- 4 min de leitura
Texto originalmente publicado em 13 de julho de 2014

“Eduardo Coutinho era um cineasta de alma gentil. Ao mesmo tempo em que mantinha uma distância cuidadosa de seus entrevistados, permitindo que sua equipe fizesse as entrevistas preliminares e apenas se aproximando dos personagens no momento das filmagens, era também um diretor que rapidamente se apaixonava pelos donos das histórias que ajudava a contar – e, se não se apaixonava, ao menos os respeitava..” Pablo Villaça
Rotular Eduardo Coutinho apenas como “mestre do cinema nacional” é de certa forma diminuir a importância do cineasta, que sem dúvida é um dos grandes nomes da história da sétima arte. A característica que mais me chama atenção em sua filmografia é o fato de abrir mão de discussões políticas/ideológicas para explorar as pessoas que habitam aquele universo inserido, assumindo uma postura humanista que poucos cineastas exibem, por mais que os cenários trabalhados em seus documentários sejam complexos suficientemente para servir de finalidade à obra. Deixando claro que sua preocupação é expor acima de tudo a trajetória de seus personagens. Sem buscar julgá-los, simplesmente conhecê-los, e tornar-los próximos do espectador. A câmera se transforma em um amigo para eles. Como diria o próprio Coutinho “o que faço não é entrevista, mas sim conversas”.
Como exemplo, não poderia deixar de citar sua obra mais valiosa, Cabra Marcado Para Morrer(1984). Coutinho adotou uma estrutura jornalística de reportagem, dando continuidade a um projeto interrompido há quase 20 anos antes, sobre o assassinato do líder das ligas camponesas João Pedro Texeira, dirigido por ele em 1964 (ao qual havia escalado os próprios familiares da vítima como atores para os respectivos papéis), que acabou tendo as filmagens interrompidas e parte dos materiais usados recolhidos devido ao Golpe Militar, mais tarde recuperando alguns e usando no projeto, intercalando realidade e ficção. Nessa retomada, o diretor conduz a narrativa através do sentido de resgate, não só dos vestígios do projeto não concluído, mas das memórias e do presente daquelas figuras. Coutinho consegue unificar quase três décadas em um só trabalho, abordando o impacto que os respectivos processos históricos de cada uma delas tiveram na vida dessas pessoas.
O resultado é um trabalho que revolucionou o gênero e influenciou vários cineastas posteriores, marcando sua carreira, até então pouco valorizada. Trabalhando sem um roteiro prévio, conduz o público a investigar junto com ele, permitindo que acompanhemos o filme à medida que ele vai sendo construído. Pode-se dizer que é quase um diário de bordo. Ousando a exibir microfones e tomadas repetidas dentro da mesma seqüência, colocando em questão o sentido de realidade cinematográfica padrão. Onde aqui já é visível sua fascinação em conhecer a fundo a trajetória daqueles personagens, marcantes até hoje, graças à liberdade que o diretor proporciona diante das câmeras para os depoimentos. Como esquecer dona Elizabeth, viúva do líder, e a trágica separação de sua família, vítimas dos períodos retratados. Em contraste com imagens da década 60, os rostos marcados pelo envelhecimento se tornam o símbolo dos tempos percorridos.
"A picada que o filme abre, a meu ver, não é tanto o fato de a equipe aparecer - isto se faz muito. O importante, a meu ver, é que certas informações de texto e de estrutura do filme servem para indicar as condições de produção da "verdade". Quer dizer, hoje as pessoas falam dessa maneira, numa determinada situação; no dia seguinte, de surpresa, podem falar de outra maneira." Já dizia Coutinho.
Ele sempre levantava o fato de uma verdade bem mais complexa do que aquela apresentada ou vista. Adotando essa reflexão sobre esse conceito típico na estética de seus filmes. Avançado quase 30 anos depois de Cabra Marcado Para Morrer, vamos ao seu Jogo de Cena (2007), onde o diretor brinca com essa “definição”. Contando com uma estrutura diferente do trabalho citado anteriormente, se passando em um único cenário, um teatro, com poucos detalhes chamativos no ambiente, apenas destacando a expressão dos entrevistados. Coutinho pediu a varias mulheres desconhecidas para que falassem suas histórias, depois convidou atrizes para representar cada uma delas. Mas afinal, a encenação pode fazer tanta diferença na imagem que quer ser passada? O “parecer” hoje em dia não é um piloto automático para tantos indivíduos? Será que não somos todos atores nesse espetáculo chamado vida? Questões como essas são nos levado a refletir depois da sessão.
Aqui como de costume, Coutinho não faz questão de esconder sua produção, equipamentos, processo de criação (evidente logo no primeiro plano que mostra um cartaz exposto em uma parede comum, convidando mulheres a participar do documentário), como também cria uma interessante metáfora envolvendo a exclusão de seu rosto diante as câmeras, diante de tudo que já foi exposto, dando o sentido de que ele pode ser a própria câmera, aquela que acompanha os relatos, que é tão espectador quanto nós que estamos assistindo.
E poucos anos depois, As Canções (2011) (que viria ser seu último trabalho lançado comercialmente antes de sua trágica morte) conta com estrutura semelhante a Jogo de Cena, usando apenas uma sala escura, onde aqui o traço de sensibilidade para captar a essência dos personagens, recorrente na carreira do diretor, continua mais que evidente. Pedindo que seus convidados cantem canções que marcaram sua vida, com o fim de observar os sentimentos que esta tal os provoca. Sempre os levando a se sentirem à vontade, de certa maneira esquecer a presença da câmera. E o estilo que quebrar o sentido de realidade cinematográfica visto anteriormente pode continuar sendo evidenciado, exibindo um momento que o celular de um dos convidados toca, durante o depoimento.
Variando entre momentos divertidos devido ao prazer que é esboçado pelos que narram ao relembrar, e outros extremamente tocantes pela emoção visível nem sempre pelo choro, mas pelas belas expressões captadas por Coutinho, que extrai do que ele mesmo definiria como uma conversa, a qual deixa essas pessoas tão à vontade que a impressão final é que estão desabafando com um velho amigo de infância. E é claro que isso não seria possível nunca caso o cineasta não deixasse sempre transpor essa sua paixão por... pessoas.
Como diria Consuelo Lins “Filmar a palavra em ato, o presente dos acontecimentos e a singularidade dos personagens, sem propor explicações nem soluções: esses são os princípios do cinema documentário de Eduardo Coutinho”
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