Afinal, para que serve a crítica?
- Tarcísio José Morais
- 3 de jun. de 2017
- 4 min de leitura
Uma reflexão sobre a natureza da percepção crítica e seu papel.

A dicotomia crítica e público existe em todos os meios de produção que se sujeitem a apreciação e, no cinema, essa dicotomia cria, quase sempre, e a depender do filme em si, um verdadeiro cenário de guerra. Agradar a crítica e público é para poucos, isso parece ser o consenso, assim como encaliçaram-se as ideias de que crítica, naturalmente, é a parte analítica da plateia que se sujeita a ver o filme com o objetivo de julgar esses ou aqueles aspectos da produção, enquanto o público está ali apenas para o divertimento e que, naturalmente, pouco importa a qualidade do que ele está vendo. A crítica pode pagar para ver, o público paga ainda mais; pelo aval da crítica pensa-se sobre o que se faz ou fez, pelo aval do público se faz mais e mais daquilo que não precisa ser exatamente “bom”. Alguns cineastas valorizam o primeiro grupo, outros, só escutam o segundo. Se o público acumula números e lucros, ignora aspectos da qualidade da obra, como alguns acreditam, e agrariam os lucros, então, para que serve mesmo a crítica?
Remetamos primeiro ao filme Ratatouille (Brad Bird, 2007). Sim, há outros com maior profundidade cênica, não que essa obra lindinha não seja para mim, mas eu a escolhi pela linguagem tão simplista. Em dado momento da sequência final do filme, o personagem Anton Ego diz que “no quadro geral, a mais simples porcaria, talvez seja mais significativa do que a nossa crítica”. Essa sentença consolida um quadro bastante simples de compreender: ora, a crítica nada mais leva em conta senão a questão catártica, a grosso modo, aquilo que a obra causou em si de relevante, o ponto em que a obra recria um aspecto, muitas vezes íntimo, de quem a aprecia. É por essa razão que a catarse varia tanto e que um filmezinho retalhado pela crítica pode causar em alguém tamanha simpatia. Cumpre entender, entretanto, que a catarse, não é a crua representação de uma convicção, mas um resultado de uma sensação mais complexa, que aliada à nossa capacidade de racionalizar, destrói aquele gostar fervoroso que nos cega o senso crítico. A catarse não nos impede, por exemplo, de reconhecer as falhas de uma produção que tanto nos tocou ou conquistou, em maneira mais clichê de falar. Esse sentimento não é exclusivo de quem se intitule crítico, mas do ser humano que, desde as tragédias gregas, usa-o, quase inconscientemente para velar esse ou aquele gosto. A partir desse sentimento, vem a capacidade de analisar o que nos causou empatia. É justamente nesse momento que aparece a desconstrução e em que, infelizmente, se erguem as dicotomias delicadamente rivais.
Crítica é público e público pode ser crítica. O papel do grupo crítico é justamente não deixar a catarse transformar-se em paixonite, daquelas que nos cega para a análise séria e construtiva, muito embora ainda, dentre os que se intitulam críticos profissionais, haja tamanhas paixonites. O público começa, então, a odiar a crítica porque não percebe que ela é apenas uma parcela sua que decidiu ir além da paixonite, das impressões a partir do explícito e da alimentação das paixões impulsivas que ainda residem em nossas mentes. Logicamente que a questão catártica ainda diz respeito ao gosto pessoal e seria tolice acreditar que não ocorre, a diferença básica é que até o gosto pessoal é alvo de análise e a compreensão lógica nos mostra que ele não é universal, nem tem de ser. Eu posso gostar, o outro, tem o direito de não gostar.
Nisso reside a maturidade do crítico: respeitar e aceitar o novo e o diferente e nisso reside a dificuldade do público. O sujeito que se aventure a ser crítico, seja de qualquer forma de arte, tem antes a missão de realizar leituras do que de apenas contemplar. O estado contemplativo cega e produz paixonite, as leituras diversas nos possibilitam maior compreensão de mundo e, consequentemente, maior compreensão acerca dos aspectos que procuramos analisar. Qualquer indivíduo que não se julgue crítico, mas que se aventure a analisar o próprio gosto, a própria opinião, já está se mostrando crítico.
E talvez para isso sirva a crítica.

Não se trata de justificar o nosso gosto, a nossa preferência, a nossa opinião, mas de reafirmá-la, não só para os outros, mas principalmente para nós mesmos. A crítica, quanto mais madura, nos permite uma viagem para dentro de nós mesmos e uma releitura daquilo que acabamos de contemplar, dessa vez com outros olhos. Quantas vezes uma crítica de filme, álbuns musicais, série, me fez sair de minhas concepções e possibilitar as diferentes experiências, as diferentes leituras? E isso não foi resultado do texto, vídeo ou conversa, mas da autocrítica que o texto, vídeo ou conversa me proporcionou.
A dificuldade só se mostra quando aqueles que se dizem críticos esnobam e desdenham do grupo para os quais eles mesmos escrevem ou discorrem sobre essa ou aquela obra. Uma crítica que não incitar no leitor, espectador, ouvinte a vontade de reavaliar sua visão de uma obra não terá, decerto, prestado serviço algum a própria arte do pensamento crítico. Escrever uma crítica para converter alguém ao nosso gosto ou depreciar uma obra por mero senso bizarro de diversão não é sinal de inteligência ou superioridade, apenas de arrogância e narcisismo desmedido. Para mim, para uma boa crítica, não serve a superioridade, mas a empatia e, muito mais, a humildade.
Afinal, como já diziam os mestres gregos, mais sábio é aquele que começa a admitir que nada sabe. Mais crítico é aquele que começa a pensar sobre a própria visão que se teve da obra e as possibilidades que esta, quando trabalhosamente composta, nos traz. Mais cínico é aquele que desdenha para ganhar aplausos e não percebe que, nesses casos, a mais simples porcaria, é mesmo bem mais significativa do que a sua própria crítica.
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