Obra-prima do cinema japonês, A Mulher de Areia reflete a busca do homem por uma liberdade inalcançá
- Leonardo Bastos
- 26 de jun. de 2017
- 3 min de leitura
Lançada há mais de cinco décadas, a obra de Hiroshi Teshigahara continua sendo uma grandiosa reflexão sobre a condição humana e a vida em sociedade.

O tempo urge, as coisas estão em constante processo de mutação. Mas, mesmo diante de todas as evoluções que passamos enquanto espécie, qual é de fato a liberdade concreta do ser humano? Sufocamos nossos instintos mais selvagens para podermos viver em sociedade, implementamos dentro de nós um sistema que nos define pelo acúmulo de bens materiais e os status que estes proporcionam, e somos condicionados a usar estes bens para suprir nossos piores vazios internos. E o pior: queremos alcançar essa liberdade, mas estamos quase sempre nos tornando juízes das liberdades alheias.
A Mulher de Areia é uma obra consagrada, filha do período conhecido como a Nouvelle Vague japonesa, que explora justamente essas contradições da condição humana, quase como uma distopia do homem em sua jornada interna pelas limitações de sua liberdade. A primeira sequência já traz a tona uma câmera que vaga perturbada e sem trajeto por um deserto de rumos inalcançáveis, numa abordagem que estabelece o psicológico de seu protagonista como eixo narrativo já nos primeiros minutos, quando o plano do sujeito acariciando a areia se alterna ao que traz a figura da mulher como objeto de desejo carnal. O personagem se isolou em busca de insetos para aumentar sua coleção e obter sucesso em pesquisas acadêmicas, deixando claro em diálogos que o alcance daquilo funciona como uma justificativa para o sentido de sua existência. Depois de ser enganado e ficar preso com uma jovem viúva numa casa situada na vastidão do deserto, o homem se torna escravo de um grupo de habitantes que o obriga a colaborar numa escavação que parece chegar a lugar nenhum. A areia permeia por todo o ambiente e está impregnada pela casa e os personagens, ilustrando como aquelas almas se sentem poluídas e incomodadas. E é esse frequente incômodo que Hiroshi Teshigahara injeta em sua atmosfera, construindo, por exemplo, a consumação do desejo sexual do casal praticamente como um ato de piedade e desespero.

Em um dos momentos mais desconfortáveis do longa, o professor se torna atração de uma platéia e é intimado a agredir a companheira publicamente, com o intuito claro de promover a diversão dos espectadores locais. A geografia do ambiente remete a estrutura de um palco circense, tanto é que sequência é concebida de tal forma que simboliza um verdadeiro espetáculo. Não deixa de refletir como uma crítica social ao machismo exacerbado que foi imposto à sociedade japonesa desde os tempos primórdios, já que o homem japonês havia se habituado a exercer na mulher um domínio que beira a agressividade e a psicopatia, sustentando a vitalidade masculina como sinônimo da demonstração desse domínio perante o seu meio social. Ao homem é exigida a manutenção de uma brutalidade que o oprime e fere sua humanidade. Assim, é a alegoria da prisão do Homem em sua individualidade e as insanidades do sistema “sociedade” que evidencia o quanto temos que sofrer para aceitar o sentimento de compaixão como a força mais próxima da libertação. O arco narrativo do protagonista é concluído com a rima visual que contrasta sua primeira visita ao mar, quando os planos centram-se na imensidão da natureza, que aprisiona Eiji Okada por não compreender seus próprios valores internos, com seu retorno final ao mar, quando a câmera inverte a lógica dessa construção estética anterior e deixa a vista do mar em segundo plano, focando no sujeito. O infinito do mar agora pode ser observado nele, já que aceitou seu destino e entendeu sua condição. A descoberta da capacidade da obtenção de água em meio àquela vastidão de areia comprova o único fio de esperança que podemos nos agarrar para aceitar nossos desertos como casa, e não como encarceramento.
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