2001 — Uma Odisseia no Espaço: Da vontade corrompida de poder à existência transcendental
- Tarcísio José Morais
- 8 de jun. de 2017
- 4 min de leitura
Uma análise sobre a ideia dos níveis de consciência humana que podem ser discutidos com base em passagens da obra, que está prestes a completar 50 anos.

Lançado em 1968, um ano antes da ida do homem à lua, 2001 — Uma Odisseia no Espaço, dirigido por Stanley Kubrick, é um filmaço, uma obra de arte genial, com uma concepção artística única no cinema, e diria jamais igualada ou superada por quaisquer cineastas que insanamente pretendesse. Acho que resumi tudo o que poderia dizer, enquanto filme, sobre essa obra rara. Entretanto, convido o leitor a irmos por uma análise maior que a cinematográfica, isso porque 2001 é assustadoramente maior que um longa-metragem, e adquire uma projeção ainda mais magnânima do que a que já adquire como produto cênico. Aviso que essa análise não é a única que se pode fazer sobre o filme, sabemos que boas obras deixam margem a quase infindas possibilidades de interpretação que não se restringe a uma só visão de si. Essa interpretação é, de fato, a que mais me empolga e me deixa em êxtase cada vez que vejo o filme. Falaremos, então, sobre a ideia dos níveis de consciência humana que podem ser discutidos com base em passagens da obra.
Comecemos pelo primeiro ato, chamado de A Aurora do Homem, em que ele nos apresenta um grupo singular de primatas, muito semelhantes aos macacos e bem próximos dos primeiros hominídeos que se tem notícia. A chegada de um monólito causa estranhamento e, quanto a essas sequencias não vamos nos deter, direcionemos nossa atenção à cena (clássica, e com razão) em que o macaco descobre, numa epifania claramente relacionada ao estranho objeto o uso que o osso pode adquirir, tornando-se um artefato do qual ele pode usar a diversos fins em favor de suas necessidades. Esse estalo de consciência, entretanto, desemboca numa epifania nada otimista: à medida que ele descobre as funcionalidades do objeto a seu auxílio, descobre o uso dele para o prejuízo do outro, até mesmo para causar sua morte. O filósofo alemão Friedrich Nietsche já nos alertava desse retrocesso, ao afirmar que “a consciência é a última e derradeira fase da evolução do sistema orgânico e, por conseguinte, também o que há de menos acabado e de menos forte neste sistema”. Justamente por essa perversão é que a consciência de poder nasce de forma negativada. O ser primitivo não só se engrandece pelo que descobre das funções do objeto, mas se sobrepõe socialmente aos outros quando descobre que os pode ferir ou mesmo subjugar com o mesmo objeto. Esse nível de consciência é, de fato, mais associado ao homem primitivo, no filme, e contempla bem a visão de um ser social que ainda não se desprendeu do instinto de destruição pela própria vontade corrompida de ter o poder, não com os outros, mas sobre os outros.

Saltemos então, para a terceira parte, chamada de Missão Júpiter, na qual conhecemos o personagem que, em minha humilde opinião, é o mais fabuloso dessa obra: o computador HAL, ou como é visual e textualmente adjetivado, o Ciclope, Olho Que Tudo Vê, Impassível de Erro. Ao perceber que será desconectado, HAL, que foi criado para ser uma fiel reprodução eletrônica da consciência humana, demonstra medo e consolida a consequência bastante comum em povos do mundo todo, que há muito aflige a humanidade, da consciência da mortalidade, finitude ou, como costumamos chamar, apenas consciência da morte. Esse medo, chamado por Freud de Tanatofobia (referência ao Tânatos da Mitologia Grega, que simbolizava a própria morte), segundo o psiquiatra, deve-se ao fato de que “o nosso inconsciente não lida com a passagem do tempo, não calcula o quanto nos resta viver. A causa desse medo mórbido não pode ser a morte, pois quem o expressa ainda não morreu”. A essa causa arriscamo-nos a dizer que apenas uma designação parece ser compartilhada pelos povos distintos: o medo de inexistir. HAL, diferente da humanidade, não possui um inconsciente, não como estamos acostumados a compreender, nem crenças ou esperanças de uma vida futura, e nem a ideia de que seu corpo possa, como acreditam algumas doutrinas, fazer parte da energia maior do Cosmo. Isso porque tem a consciência existencial que a sua programação permite e as complexidades da crença humana lhe são estranhas, totalmente distantes de seu padrão de raciocínio, assim como ele também não comunga da ideia de legado como perpetuação através da memória. Entretanto, HAL, nesse sentido, se aproxima fielmente de muitos de nós, humanos, mesmo nós em nossa complexidade, por não possuir a consciência sobre a existência que transcende à matéria. E nisso chegamos ao nosso próximo nível de consciência.

Na quarta parte de 2001 — Uma Odisseia No Espaço, chamada de Júpiter e Além do Infinito, o Dr. David Bowman, utilizando-se de um módulo de fuga, chega próximo ao monólito, para o qual é puxado e, após passar por um túnel psicodélico de luzes coloridas, vê-se em uma versão de meia idade que, progressivamente, vai-se tornando velha. Ao contemplar o nosso planeta como o primata contempla o osso, David parece ter uma epifania e adquire a consciência da transcendentalidade; passa a se perceber como um ser transcendental. Ao se aproximar do monólito, ele se transforma num ser parecido com o feto, cercado por um orbe transparente de luz, chegando, enfim, a transcender a existência que antes acreditava ser finita. A luz é justamente a compreensão plena da existência transcendental. David não mais comunga do medo de HAL porque transcendeu o sentimento de inutilidade e a consciência da existência finita, tenha sido isso, pelas ideias dos espiritualistas do pós-morte, dos materialistas que creem na perpetuação dos elementos que constituem o organismo humano voltando, em outros subníveis moleculares, à dinâmica existencial, ou mesmo pelas ideias dos que creem que a consciência, alma ou essência transcende e passa a fazer parte da energia maior denominada como Cosmo. Seja como for, David transcendeu e isso, de certa forma, o colocou acima da humanidade limitada pela vontade corrompida de poder ou pelo medo da própria morte.
Leonardo Boff, escrevendo sobre transcendentalidade, disse que "todo ser é completo por si." E isso é transcender. É encontrar em si a consciência existencial que o torne livre de seus entraves materiais, sentindo-se assim na plenitude da própria existência. David é um personagem que se torna transcendental, num filme que é, indiscutivelmente, transcendental para o próprio cinema, feito por um cineasta que, sem sombra de dúvidas, transcendeu a visão estreita que tínhamos, e que ainda temos, dessa forma magnânima de arte.
Kommentarer