top of page

Espetáculo visual e reflexivo, Blade Runner 2049 é um filme que desafia o espectador

  • Leonardo Bastos
  • 9 de out. de 2017
  • 8 min de leitura

Depois de mais de três décadas de hiato desde o aclamado clássico do Sci-fi de Ridley Scott, continuação chega aos cinemas e não decepciona os fãs do antecessor e do bom cinema.


“Essa lembrança que nos vem às vezes... folha súbita que tomba abrindo na memória a flor silenciosa de mil e uma pétalas concêntricas... Essa lembrança...mas de onde? de quem? Essa lembrança talvez nem seja nossa, mas de alguém que, pensando em nós, só possa mandar um eco do seu pensamento nessa mensagem pelos céus perdida... Ai! Tão perdida que nem se possa saber mais de quem!”

Mario Quintana


“Morrer por uma causa nos faz humanos”, diz uma personagem em determinado momento de Blade Runner 2049 - que, assim como o longa dirigido por Ridley Scott em 1982, é uma obra que está mais interessada em discutir o que de fato confere nossa humanidade do que desenvolver uma trama em si. A dissecação das inerências humanas e suas representações no confronto da criação onírica já encontrava-se em vigor no cinema de blockbuster deste ano em duas de suas melhores produções. Se Logan estuda o sentir do homem ao extrapolar sua mortalidade e Planeta dos Macacos – A Guerra o defronta com sua capacidade de compaixão, Denis Villeneuve desenvolve aqui um trabalho que lida com o equilíbrio entre estas duas vertentes de reflexão. Não deixa de tratar do peso da existência nem do valor do sacrifício em prol do bem estar do próximo. Além disso, é um filme que exprime a alma humana através da potência das imagens e suas significâncias que vagueiam perdidas entre as memórias e as formas que as moldamos de acordo com o nosso estado de espírito e apego a determinado sentimento.


Essa continuação nos leva para uma cronologia que acompanha o intervalo entre este e o seu antecessor, com a passagem de mais de três décadas. Depois dos problemas enfrentados com os replicantes Nexus 8, um novo modelo é concebido para servir fielmente à sociedade da Califórnia em 2049. Somos apresentados de cara à rotina de K (Ryan Gosling), que atua como blade runner para a polícia de Los Angeles, caçando replicantes foragidos. Ao ser encarregado de investigar um certo fato que desperta o interesse da polícia e da Tyrel – agora sob o comando de Wallace (Jared Leto) -, os caminhos de K acabam se deparando com um velho conhecido nosso: Rick Deckard (Harrison Ford). Não que Blade Runner 2049 seja um filme que dependa de reviravoltas pra funcionar, mas o descobrimento das existentes é um dos prazeres que aguardam o espectador nesta experiência cinematográfica. Portanto, se ainda não viu o filme, oriento que interrompa a leitura do texto até ter feito, pois pretendo tocar em algumas coisas que comprometem detalhes do roteiro escrito por Hampton Fancher e Michael Green.


Primeiramente, é preciso reconhecer que não é uma tarefa fácil trazer às telonas uma imaginação dos desdobramentos que procederiam o universo de uma obra tão cultuada e marcante quanto a produção de Ridley Scott. O desejo por reverência pode tanto inspirar cineastas quanto os cegar para a esfera criativa, e esta pode soar pretensiosa demais para ser aplicada à obra. Villeneuve, dono de uma filmografia extremamente coerente em termos de escolhas que se adaptam ao formato e proposta que injeta em cada trabalho, não faz diferente aqui, mantendo a atmosfera impassível e a temática filosófica, mas olhando em volta aos espaços inexplorados daquele mundo preenchido por intermináveis noites, grandes prédios amontoados por outdoors de corporações, bens de consumo descartáveis e luzes de neon que condicionam a habitação de vida praticamente a ser uma matéria física excessiva ali. O Sci-fi com ares de noir continua presente em 2049, a fotografia agora assume os contornos do mestre Roger Deakins, que nos expressa os raios solares dali tão opressivos e sem brilho quanto qualquer noite nos ambiente da metrópole. E até mesmo quando estamos envoltos de lugares cercados apenas pela natureza, a poeira domina as lacunas de cena e parece refugiar qualquer vislumbre que venha do além.


Interessante constatar o paralelo com o anterior: enquanto o enredo do primeiro trazia como cerne a busca de traços de artificialidade nos humanos e a incógnita da origem replicante em seu protagonista, a continuação subverte a lógica e direciona a jornada para a percepção de humanidade em uma estória que agora é regida pela presença de replicantes. Enquanto tínhamos a saga de um humano que encontrava sentido para sua existência ao se descobrir replicante, desta vez é o replicante integrado às normas do sistema que busca respostas ao suspeitar ser humano. Logo é nos revelado a natureza de K, e o que é posto em cheque no desenrolar do filme é a veracidade de sua condição, expandindo a aplicação dos conceitos imagem versus realidade. Vivido por Gosling como um sujeito que expressa sua insatisfação com a rotina desde o disparo provocado pelo próprio instinto de defesa e ataque que o sistema lhe impôs até a falha no funcionamento de sua namorada, o sistema operacional Joi (Ana de Armas). Por ter consciência acerca de sua essência replicante e das memórias que carrega, K se agarra a qualquer fio de esperança que o faça se sentir vivo, sendo que, do mesmo modo que o sentimento nutrido por Joi o faz aceitar aquela relação como algo efetivo, as emoções que uma recordação implantada lhe desperta parece soar real o suficiente para o fazer questionar sua própria natureza.


O que nos leva a indagação central do filme, afinal o que é uma lembrança real em seu estado puro? As emoções que uma memória de infância acarreta em K o levam a aceitar aquilo como realidade. A personagem de Carla Juri diz que as memórias são derivadas de cada sensação de nosso estado de espírito. Ao distrair meu primo de cinco anos, me veio à tona há alguns dias imagens soltas de uma tarde agradável que tive quando tinha uma idade próxima a dele. A descrição fiel dos fatos já se configurou tão remota pra mim que não me resta mais nada daquela lembrança que não seja a sensação de paz que vivenciei. Eu nem me recordo se aquele dia foi realmente satisfatório ou as circunstâncias que levaram ali. Quantas vezes algo não nos marca pela exaltação do momento, seja este prazeroso e angustiante, e o guardamos vivos em nossos inconscientes de acordo com o que desejamos sentir em relação àquilo? Ou quando os registros mentais de imagens que temos vão se olvidando com o tempo ao ponto de criarmos nossa assimilação particular do real. As recordações não seriam de fato apenas a nossa captação e tradução em frames da forma que absorvemos e sentimos cada experiência mundana que é inserida em nossos caminhos? E esses frames não sobreviveriam pela forma que somos afetados pelo sensorial? Mas eles existem verdadeiramente ou são apenas fragmentos fantasmagóricos?


Para Deckard, essas imagem servem de abrigo para o que ainda resta de um homem desconstruído, que acumula retalhos de um passado como se desesperadamente necessitasse provar para si mesmo o tempo todo que aquilo tudo se mantém genuíno em sua melancólica existência. O mundo alaranjado e repleto de resquícios perdidos de outro tempo que ocupa atualmente o ex-blade runner reflete a imensidão de sua solidão e a tragédia de ter se tornado mais um dos vários objetos que residem naquele espaço, como ilustra o plano que traz Ford enquadrado de forma simétrica idêntica aos objetos que dividem o espaço da cena. Sem a mínima preocupação de esclarecer para o espectador a dúvida sobre a origem replicante do personagem deixada pelo clássico de 1982, o foco aqui é acima de tudo a análise das circunstâncias mentais em que este se encontra e sua denotação do tempo e da condição de realidade pós sua trajetória de escape e de autoconsciência de que “todos esses momentos se perderão com o tempo, feito lágrimas na chuva”, como ouviu dos inesquecíveis últimos suspiros de um velho conhecido há anos. Ford confere a cada expressão de Deckard uma respiração abafada que transmite com perfeição o desgaste físico e mental daquele individuo.


Sem deixar de realizar também a alegoria sobre a opressão capitalista e a lógica do poder que pontuou de forma tão presente o anterior, temos aqui a representação do Tyrell de Joe Turkel em Leto, que habita uma concepção visual que referencia a áurea celestial que se proclamava Tyrell com a forte paleta dourada. Ao limitar a participação do personagem, o roteiro a faz funcionar por transformá-lo bem mais na personificação do conceito de controle do que numa figura crível, deixando arestas entreabertas sobre a personalidade do sujeito. Leto acerta ao compor o personagem com fala lenta e rouca, o que aumenta o temor que sentimos. É uma pena que Luv (Sylvia Hoeks) caia tanto para a caricatura, exibindo todos os traços frequentes de personagens do tipo, das caras e bocas durante suas ações até beirar o ápice de se gabar depois de um combate com a frase “Eu sou a melhor”.


Aliás, diga-se de passagem, os diálogos são um problema a parte. O primeiro ato é recheado de exposição e um texto que muitas vezes soa inverossímil. O que diminui estes problemas é a abordagem fria adotada pela proposta do projeto, que soa orgânica em muitas frases mecânicas proferidas pelos personagens. E não vou negar que me incomodou profundamente um filme que confia tanto na inteligência do espectador remartelar um certo diálogo do início da projeção em um momento chave do terceiro ato, como se precisássemos ver desenhado o que o filme quer nos instigar a refletir.


Mas são tropeços muitos insignificantes perto do que é alcançado aqui. Assim como sua primeira experiência em Sci-fi com a obra-prima A Chegada, Villeneuve opta por atribuir um ritmo contemplativo ao longa, conduzindo cada sequência de forma calculada e precisa, permitindo assim que se construa também através da ótica de nossos pensamentos, que ganham a oportunidade de processar cada informação que é jogada em tela bem mais pelo olhar. Essa lógica matemática não se exclui inclusive na condução das sequências de ação, que ao contrário da escala insana de filmes do gênero, ocorre de forma mais crua e pés no chão, mantendo a câmera imóvel na ação sofrida pelo personagem como se estivéssemos presos junto a ele naquela angústia que parece não ter fim, beirando a simetria de um ballet. Tensão e incômodo estes que são externados principalmente pela excelente trilha sonora do compositor Hans Zimmer, que apresenta aqui um trabalho que incorpora ruídos e notas em proporção grandiosa que salienta toda a apreensão interna daquelas figuras em sua busca por uma mínima sensibilidade e autenticidade humana, nos deixando inertes àquela atmosfera. E por mais que meu coração de fã tenha dado falta de algum acorde da icônica composição de Vangelis, compreendo que 2049 queira trilhar personalidade própria.


Incorporando a riqueza filosófica e atmosfera do antecessor, mas tomando um caminho particular que expande os conceitos daquele universo e ainda abre outras possibilidades imaginativas, Blade Runner 2049 encerra dando ao seu protagonista a compaixão como manifestação mais próxima do existir. K foi renegado a todos os apegos que proporcionava o mundo material, incluindo a sua própria humanidade, pois nem suas memórias sequer lhe pertencem. Mas o arco do nosso herói foi planejado justamente para guiar sua jornada pela alma, afinal é apenas o sentir que lhe conecta com aquela realidade, com as recordações alheias, com o direito de se definir humano. E como seres pequenos diante da infinitude do universo, o desconhecimento de nossas raízes e de tudo que vem além do nosso senso do real, o que nos resta no fim das contas é abraçar nosso conjunto de matéria e reações químicas como algo tangível através da empatia como a forma mais próxima de se perceber vivo, pois já que tudo se apagará no tempo feito lágrimas na chuva, quem de fato é menos humano e dono das memórias do que qualquer outro?


Ao exercer o poder da escolha e se compadecer com a dor de um pai que tem a chance de recuperar o único vestígio que ainda o resta de um tempo feliz, K rompe com qualquer controle que foi lhe exercido sob sua vida inteira e nunca havia se sentido tão humano e real.

Comments


 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
nos sigam nas redes sociais
  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W

© 2023 por Pitstop Cultural. Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Twitter B&W
  • Instagram B&W
bottom of page