Sobre O Mecanismo e outra forma de analisar política
- Lucas Petraglia
- 2 de abr. de 2018
- 9 min de leitura
Se por um lado a série acerta em escancarar as estruturas do sistema político e da corrupção em suas entranhas, por outro falha em nunca lembrar que este sistema está inserido numa bolha muito maior que é o processo econômico.

Terminei recentemente de assistir O Mecanismo e me impressiona todo o alvoroço injustificado em cima da fraca série de Padilha, que é produzida e veiculada pela Netflix.
Primeiramente porque a série tecnicamente deixa a desejar. O roteiro é mal desenvolvido e simplista, os diálogos são novelescos, as atuações medianas, e é repleta de clichês absurdos (o que fica visível, principalmente, na trilha sonora e no arquétipo dos personagens principais), além da qualidade do som que é problemática (quase inaudível em alguns diálogos - mesmo com o som amplificado ou em home theater).
O primeiro episódio - pra mim, o pior da temporada - introduz os personagens e a trama já deixando claro a ideia central da série: expor a roda que conduz o jogo político-empresarial e a corrupção no país (de acordo com uma das primeiras falas do personagem principal, o maior problema da nação - responsável por todos as outras mazelas, como miséria, educação e até a taxa de juros). A série, aliás, poderia ser colocada como sequência ao final do filme Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro (2010).
A série tenta se posicionar como apolítica e livre de ideologias - o que obviamente é impossível, sendo que ideologia é indissociável da existência humana consciente e naturalmente política. "Ideologia é o que fundamenta e embasa nossa interpretação da realidade", nas palavras do escritor Alex Castro. Mas como arte, é claro, as visões sobre ela serão mais determinadas pela posição do espectador do que do realizador. Embora, também, os realizadores tentem ressaltar a todo instante o caráter ficcional da obra, não contribui para isso a utilização da voz over em off - dispositivo tradicionalmente utilizado em documentários - ou da sinalização ao fim de cada episódio do baldrame da produção no livro Lava Jato - O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, do jornalista Vladimir Netto - descrito como um livro-reportagem.
O Mecanismo zomba de toda a classe política, de modo geral, e da forma que olhamos para ela com certa admiração cega e ingênua: por exemplo, quando coloca o personagem que representa o juiz Sérgio Moro lendo um gibi intitulado O Vigilante Mascarado, apontando ironicamente quão limitada é nossa visão de ver o juiz como o grande herói da nação - afinal, ele é só um sujeito comum que lê gibis como eu e você. Mas, ao mesmo tempo em que Moro não é o herói que todos desejávamos que fosse, o personagem de Marco Ruffo (Selton Mello) é exatamente o estereótipo do (anti) herói, obcecado com a investigação e indignado com o sistema, como todos os cidadãos brasileiros do bem, é claro.
E não apenas: o novo herói nacional é aquele que não se deixa corromper jamais (não tem carteirinha falsa, não suborna o policial pra evitar uma multa e quiçá também não baixa filme ilegalmente pela internet) e coloca a mão na merda pra consertar o esgoto, não compactuando assim com uma rede de corrupção (só que também deixando, ao mesmo tempo, de ajudar o seu João e seu neto que só tentam - dentro de uma lógica previamente distorcida - sobreviverem). A corrupção está em tudo, é sistêmica e infinita: essa é a grande descoberta do novo herói. Mas ignora-se, assim, que ele também tem seus deslizes (mesmo que não mostrados na história) e também está fazendo o que dá com as cartas que tem pra buscar algum conforto e o que acredita ser a felicidade - exatamente como todos os outros personagens da série e da vida.
Neste ponto já podemos começar a notar, então, um dos maiores problemas da série: o maniqueísmo de ver inimigos em todo lado, seja nas posições de empresários ou políticos. De acordo com a série, não são pessoas que estão, por causas e condições específicas que surgiram para elas, quase por acaso, naquelas posições operando, ignorantes dentro da lógica de um jogo; são pessoas naturalmente ruins. Ao mesmo tempo, ela busca humanizar os policiais e investigadores, focando em suas vidas privadas sem nenhum propósito de avançar a narrativa, soando apenas desinteressante e sem prosseguimento na trama. E quase num contraponto ao estúpido fascismo - vangloriado por alguns - do Capitão Nascimento em Tropa de Elite (2007), aqui o herói diz que o policial esperto não é aquele que sobe a favela, mas aquele que luta contra o "mecanismo".

Mas O Mecanismo tem bons momentos também e que possibilitam interessantes reflexões.
Uma das cenas mais interessantes e emocionalmente envolventes da série é quando a polícia federal (ou seu equivalente na trama) invade a casa de Paulo Roberto Costa (na obra, João Pedro Rangel) para levá-lo preso: neste momento, o olhar do personagem nos desperta um sentimento de profunda comoção, afinal a lógica do ponto de vista narrativo é invertida (não olhamos da perspectiva usual da polícia que protagoniza a trama, mas da perspectiva do sujeito que está em vias de ser preso por seus crimes): não é que tenhamos pena do corrupto, mas a gente identifica o desespero de quem fez uma besteira e pensou que jamais seria punido (ou que nem mesmo tinha imaginado as possíveis consequências de seus atos).
Ora, é como quando fazemos alguma besteira, seguimos um impulso ou uma emoção, não estamos lúcidos para medir as consequências do que estamos fazendo ou os resultados no longo prazo: se estivéssemos olhando com tal clareza não cairíamos na posição que caímos naquele momento, pois veríamos arrependimento, aflição, sofrimento. Às vezes o resultado inesperado é o que nos faz acordar - mesmo que só por um instante - nos arrependendo, em certo sentido, e percebendo em algum nível a confusão pela qual fomos pegos, a distração e a sedução de alguma aparência pela qual nos deixamos levar.
Essa interpretação é reforçada por uma cena alguns episódios antes em que Paulo Roberto Costa recebe de presente um carro luxuoso do empresário Alberto Youssef (na série, Roberto Ibrahim): Costa está evidentemente reticente em aceitar o presente que reconhece como suborno e de fonte corrupta, mas quando entra na concessionária e vê o carro de perto se sente profundamente atraído e se deixa levar por esse encanto e pelo impulso. O mesmo processo se repete quando ele chega em casa com o novo carro e a mulher o questiona. Rapidamente, ela esquece dos problemas e fica seduzida também pelos bancos de couro bege ou qualquer coisa assim.
Neste processo de entrega às aparências que nos seduzem fica claro que a culpa, então, não é exatamente nossa ou dos políticos e empresários gananciosos: a culpa é da própria ganância, da própria sedução, afinal todos nós já fomos pegos por essas aflições em algum momento. Se for pra achar um culpado, que seja o sistema que reforça e estigmatiza o consumo, o poder, a vaidade e o orgulho, por exemplo: todo o processo econômico. Mas, curiosamente, o nem liberal nem marxista José Padilha não se interessa por olhar pro mecanismo mais profundo que atinge não apenas um país, mas todo um planeta.
Então, se O Mecanismo por um lado acerta em escancarar as estruturas do sistema político e da corrupção em suas entranhas, falha em nunca lembrar que este sistema está inserido numa bolha muito maior que é o processo econômico. De qualquer maneira, é louvável que a série proponha um olhar já mais aberto do que o dominante atual: o problema não é o PSDB, o PT ou o (P)MDB, mas sim o jogo que é o sistema político. Dentro desse jogo, é quase impossível que surjam seres com visões amplas e lúcidas. Quando surgem são rapidamente cooptados, destruídos (às vezes, literalmente, como no caso recente da vereadora ativista Marielle Franco), ou tem uma força inexpressiva.
Entretanto, a visão excessivamente niilista de O Mecanismo tenta desacreditar completamente o governo e as instituições pública, fragilizando ainda mais nossa já historicamente sensível democracia. Essa visão estreita acaba por não dar conta da complexidade do jogo, dos indivíduos, da realidade, sendo meramente reducionista ao tentar simplificar tudo à uma roda desenhada na parede da garagem de Ruffo. Os políticos sendo colocados como pessoas ruins e sem caráter, facilmente nos distrai que os políticos não são indivíduos com clareza de suas posições, são meras peças de um jogo. São marionetes de mega-corporações que estão por trás de todas as cortinas, controlando cada aspecto do jogo.
Afinal, a democracia representativa, da forma que a conhecemos, foi inventada com o intuito de manter a roda maior girando - ou seja, manter, dentro do possível, o status quo dominante, e os ricos e poderosos sempre ricos e poderosos - com uma aparência apenas mais bem desenhada para nos ludibriar. Quando há uma aparente "falha" no jogo, com a eleição de um operário pobre, num partido popular de esquerda, para presidente da república - dentro de uma expectativa ideológica revolucionária -, não demora muito tempo para que descubramos que aquela que era nossa aposta também é um fantoche conduzido pelos interesses das grandes empresas - que agora, através de seus principais jogadores (os empresários), são até amigos pessoais.

Mas afinal, qual é a de O Mecanismo?
Em relação às polêmicas que a série tem enfrentado, há um fundamento em quem alega a profunda desonestidade intelectual dos realizadores em trocar propositalmente uma fala que ficou marcada pelo político Romero Jucá (PMDB) atribuindo-a, em contexto muito semelhante, ao personagem referente ao ex-presidente - e, em tese, presidenciável em 2018 - Lula.
É verdade que a série traz controvérsias de outros personagens, como Aécio Neves e Temer - que numa cena interessante, embora pouco elaborada, articulam o golpe que culminou no impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff, na clara intenção de interromper as investigações da Lava Jato -, mas deve-se ressaltar que estes personagens estão fora do jogo político atual, enquanto Lula ainda tem força política atualmente.
Não acredito que faça muito sentido conspirarmos a acreditar que a série tenha motivações políticas e que haja uma manifestação defendendo A ou B. Todavia, é comum no momento em que vivemos vermos manifestações e movimentos "anticorrupção" orquestrados por partidos e candidatos específicos e que, quase invariavelmente, conduzem o público aos seus interesses.
Aqui, então, talvez surja esse sentimento misto de uma série ruim e que não sabe quais questões abordar ou por onde ir e uma onda na qual a produção surfa - seja qual for sua intenção. Por consequência, então, seus realizadores sofrem os ataques destinados aos que têm um discurso bastante semelhante e seletivo, já que esta posição de "contra todos que estão aí" já está bastante cooptada por indivíduos que, bom, estão ali.
Mas a série, mais do que um registro da história, é responsável pela construção de um sentido e uma realidade coletiva, além de suas influências na cultura. Quando representa-se um fato histórico de conhecimento público, existe uma responsabilidade em como uma obra influenciará os próximos movimentos em cima do que ela é representada.
O professor Sérgio Bruno Martins, em entrevista ao Nexo argumenta: " Muitos memes e fake news partem exatamente da desorientação de seus receptores para funcionar fornecendo explicações verossímeis e imediatas que desacreditam modelos explicativos mais contra-intuitivos ou complexos. (...) Tanto essa ideia de fake fiction quanto o argumento de que obras de ficção estão isentas de qualquer compromisso com a realidade partem da mesma premissa de que haveria uma cisão entre fato real, de um lado, e a ficção, de outro.
A primeira cobra adesão da obra ao fato cuja veracidade é pré-estabelecida e a segunda, autonomia absoluta da obra, absolvendo-a de antemão inclusive de qualquer crítica quanto ao seu sentido histórico e político, como se ela fosse produzida, circulada e recebida num limbo. É o mesmo equívoco de fundo, apenas explorado para fins diferentes."
Me parece, por fim, prematuro fazer uma série que busca, em certo sentido, ser um registro de um momento histórico do país em um caso que ainda se desenrola diariamente e no qual as informações ainda são escassas. Certamente, em dez ou vinte anos, um registro como esse seria bem mais eficiente e completo. Mas não teria, provavelmente, o sucesso arrebatador que a série consegue neste momento inflamado de discussões políticas corriqueiras em redes sociais e conversas de bar.
Talvez O Mecanismo funcionasse melhor se seguisse a ideia de séries como House of Cards ou Homeland, que retratam a política estadunidense com afinco e coragem, por exemplo - em caráter ficcional, mas com bastante embasamento plausível -, se distanciando da objetividade que tenta propor ao colocar seus personagens como cópias óbvias de personagens reais. Mas, novamente, não teria a repercussão que está tendo a obra. E este parece ser o principal objetivo de seus realizadores, de forma que toda a estética e conteúdo da produção parecem calculados com este fim - inclusive suas polêmicas: quanto mais reações instantâneas, de todos os lados possíveis, melhor. Quanto mais fogo na fogueira, mais lenha a ser vendida.
Essa é a chave pra entender qual a visão da série, de seus criadores e, claro, da empresa que os patrocina: fazer sucesso, ganhar dinheiro e manter a roda do processo econômico girando. Não importa a visão que será cultivada nos espectadores ou o registro que ficará para a posteridade. Tampouco importa se a obra vai perpetuar visões ainda mais estreitas e cultivar a ignorância (essa, sim, uma questão bem mais profunda de olharmos como causa de mazelas e sofrimentos ao invés de especular e gritar "corrupção") -, ao contrário do que deveria ser o propósito em uma obra de arte, possibilitar e aprofundar visões mais amplas e benéficas.
A série aponta que há um jogo que muitas vezes nem estamos olhando, mas não visualiza - nem mesmo sonha - uma saída: o que parece hoje é que tentamos sair do jogo criando novos jogos que, fatalmente, calham de se alinhar aos jogos maiores, voltando sempre ao mesmo ponto. Talvez uma solução seja enxergarmos que estamos naturalmente livres dos jogos, que não precisamos segui-los ou jogar por suas regras, e, a partir daí, quem sabe possamos sonhar de forma mais ampla e coletiva para construirmos um mundo em que as palavras desigualdade, corrupção, ganância, nem mesmo sejam concebíveis.
Ora, se esta realidade com estes jogos (política, capitalismo, etc) em algum momento foi criada da forma que a conhecemos, ela antes de ser possível foi sonhada, imaginada, surgiu no olho de alguém. Então, pra criarmos um outro mundo precisamos primeiro visualizá-lo como possível e começarmos a sonhar nessas direções.
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