Inesquecível e altamente necessário, A Chegada é um filme sobre o poder de dialogar
- pitstopculturalofi
- 12 de mai. de 2017
- 7 min de leitura
Sci-fi dirigido por Denis Villeneuve traz alegoria sobre o individualismo humano e sua capacidade de autodestruição.

Há pouco tempo atrás, um amigo me apresentou de forma aprofundada os ensinamentos do budismo e foi impossível não ficar impactado com, talvez, a principal reflexão da filosofia: a dificuldade do ser humano em descentralizar sua mente de si mesmo e se concentrar no próximo, se privando de um processo de autolibertação. A compaixão é o segredo da verdadeira felicidade genuína, nossa salvação, seguindo os conceitos. A principal característica que afeta a humanidade é o individualismo. A incapacidade de dialogar com o outro e enxergar além do próprio umbigo. Durante séculos de história, para defender seu egocentrismo, o ser humano foi capaz de promover chacinas e diversas estratégias de repressão, causando apenas dor e sofrimento. Políticos e corporações continuam contribuindo para uma distribuição de renda irregular e acumulando patrimônios que parecem nunca preencher um vazio irrestrito. As pessoas aparentam estar cada vez mais cegas para provar suas ideias e convicções e firmar sua voz como preponderante. Uma relação duradoura povoada de lembranças alegres pode acabar a qualquer momento em decorrência de alguma discordância ou atitude não compreendida por parte de um. A incapacidade de conexão nos leva a um abismo irreparável.
Assistir A Chegada me remeteu a essa essência da filosofia budista. Em um dos momentos do longa, a personagem Louise (Amy Adams) defende a linguagem como o maior instrumento da humanidade. Coloca inclusive acima da ciência, gerando discordância do colega cientista. E é justamente este diálogo que abrange toda essência do projeto, que carrega como verdadeiro protagonista a linguagem. É um filme que aborda principalmente o poder desconhecido da comunicação e como a falta desta pode nos afetar de forma universal. É mais um exemplar de Ficção Científica que propõe uma discussão mais ampla sobre as relações entre o homem e o incógnito num sentido psicológico e intimista, ao contrário de outros trabalhos com temática semelhante que acabam centrando em explorar universos oníricos e extrair ao máximo da fantasia aventuresca deste. Fazendo jus a ambição de obras como 2001 – Odisseia no Espaço (1968), Solaris (1972) e Contato (1997), que conduzem o espectador a reflexões maduras acerca da natureza humana e os mistérios do tempo e espaço.
O roteiro assinado por Eric Heisserer é inspirado no conto História da Sua Vida, escrito por Ted Chiang, tendo início com uma montagem ágil e precisa que pontua tocantes elipses da relação da Dra. Louise Banks – linguista – com a filha, da época de recém-nascida até sua morte prematura na adolescência, numa sequência inicial que faz recordar um momento igualmente belo da animação UP – Altas Aventuras (2009). Em seguida, há um corte sem especificação de tempo para Louise quando esta recebe a notícia pela TV de que doze naves alienígenas pousaram na terra, cada uma em um lugar diferente do planeta. Logo a doutora em linguista é convidada por militares liderados pelo coronel Weber (Forest Whitaker) a tentar traduzir as mensagens dos visitantes, se juntando à equipe o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner).
Dirigido por Denis Villeneuve, um dos diretores mais talentosos que surgiram nos últimos tempos, que comanda seu primeiro trabalho no gênero exibindo maturidade e segurança a níveis absurdos, adotando longos planos que contemplam o psicológico das personagens e ejetam a mistura perfeita entre tensão e contemplamento, criando uma atmosfera perturbadora, mas que provoca sentimentos indescritíveis ao espectador.
Este é o tipo de filme que requer total atenção do espectador em cada detalhe da projeção, desde os primeiros minutos, enriquecido com uma narrativa bem articulada que reserva desdobramentos surpreendentes em sua condução. Mas retomarei sobre esse ponto ao final do texto. Esta análise vai se ater a analisar a obra em seus aspectos sociais e filosóficos. Recomendo caso você ainda não tenha visto o filme ainda, parar a leitura por aqui, pois pretendo tocar em detalhes comprometedores da história.

A primeira estratégia inteligente adotada pelo roteiro é nos deixar sempre por dentro do que está acontecendo nos países em que as naves pousaram, sem que para isso haja a necessidade de criar novos personagens e direcionamentos para acomodar o fluxo de acontecimentos pertinentes a uma trama que lida com questões que mobilizam toda a esfera mundial, contando com um econômico e eficiente recurso de passar as informações através dos televisores da base. Assim sua narrativa permanece situada em um direcionamento específico. Exemplo pertinente a isso já pode ser observado nas primeiras cenas, quando Louise descobre a chegada das naves pela TV da universidade na qual leciona. A tensão é criada através da reação de Louise, que também está recebendo as notícias, sendo parte da construção na personagem de uma conexão com a experiência do público, que vai se estendendo a níveis emocionais e narrativos conforme o desenvolver da trama. É o primeiro passo da linguagem estabelecida com Louise. Vamos fazer parte de sua mente e entrar numa jornada interna de decifração e expansão de seus conceitos prévios.
Louise, ao contrário do outros membros de sua equipe, exerce um ar de fascinação pelo desconhecido. Seu constante olhar de encantamento traduz que a premência em decifrar os códigos transmitidos pelas misteriosas criaturas parece ser mais forte do que o medo causado. Mas, ao mesmo tempo, desperta uma obscuridade em seu emocional, que aparenta estar confuso e perdido em sua linha de entendimento quanto à linguagem dos novos seres. Louise sente o tempo inteiro que possui uma ligação interna com eles muito mais próxima do que a razão aponta, mas é preciso fundamentalmente paciência para aprender a interpretar o outro e persiste com seus colegas, cada vez menos tolerantes às tentativas de compreensão realizadas com os seres, que é preciso mais tempo para encontrar um trajeto mútuo entre ambas as partes. E é quando se despe de seus volumosos trajes de proteção ao ambiente aparentemente inóspito que representa as naves e se mostra para os seres, Luise metaforicamente também está se despindo de suas fundamentações preconcebidas e se jogando de cabeça aberta em sua missão. É quando começa a enfim a decifrar a linguagem estrangeira.
Estamos cansados de constatar que as grandes potencias mundiais não chegaram ao posto que estão inseridas atualmente na economia mundial estando isentas de sacrificar a ânsia de segundos e terceiros. A informação é uma moeda de poder. Vence quem tiver o máximo de acesso restrito ao campo das informações. Se impõe assim como um fenômeno do ápice da cultura do individualismo, onde proteger o determinado conhecimento implica em satisfação, não importa até que ponto surja consequências. É a defesa do ego em vigor. Em A Chegada, a visita das naves desperta uma verdadeira obsessão não pela informação em si, mas pelo domínio desta. Em um certo momento do filme, alguém comenta que a equipe da Rússia foi capaz de matar seu próprio intérprete para proteger suas informações. Nenhum dos doze países quer compartilhar o que conseguir extrair de cada uma das naves. A China e a Rússia, inconformadas por não compreender as informações, declaram guerra às naves. É isso que ocorre quando uma mente está operando presa ao narcisismo. Quer destruir o que não entende somente por não saber lidar com sua prisão interna. A linguagem se torna diversificada e ao usá-la dessa maneira, negando seu compartilhamento, é que as Nações entram em colapso, tornando seus habitantes estranhos uns aos outros. Cada um operando sua mente preso ao egocentrismo e distantes do coletivo. "Somos um mundo sem um líder único. É impossível lidar com apenas um de nós." Fala uma das personagens em determinado momento.
Não é a toa que quando finalmente surge o aguardado momento em que Louise consegue manter contato explícito com os seres misteriosos, eles a pedem para usar sua principal arma: a linguagem. A linguagem é uma arma que pertence aos humanos desde sempre, mas que nunca souberam usar. Ao dominar a linguagem, os alienígenas transcenderam os limites da existência. A física e tempo não são fatores obrigatórios para eles mais. O futuro pode ser enxergado com simples leitura dos códigos da vida. O objetivo de sua visita é revelado: cada canto que a nave passou vai passar um determinado dado. Só os doze dados juntos formaram um sentido para as respostas procuradas. Louise vai ter que convencer a humanidade a usar sua arma de forma correta. A dividir uns com os outros as informações obtidas. O grande vilão do filme se revela mais explicitamente no clímax: o ego. É o ego que os alienígenas vieram tentar combater. Não com super armas inimagináveis de fogo e destruição em massa. Apenas com o poder da linguagem. E quando estes justificam o porquê de ajudar a terra, a mensagem do filme se torna ainda mais veemente: pois ao ter a visão do futuro, eles sabem que vão precisar da humanidade três mil anos depois. É preciso evitar a autodestruição. Garantir a sobrevivência da única forma possível. Todos precisamos um do outro em algum momento.
Mas Louise já a dominou e se deixar conectar com o desconhecido despida de preconceitos. A linguagem se revelou com uma habilidade que se desenvolveu de forma extraordinária, além das fronteiras de tempo e espaço. Louise consegue ver o futuro. Começo, meio e fim não determinam mais a conjuntura de seus momentos. O quebra-cabeça vai se encaixando até fazer sentido com as lembranças de Louise e ao mesmo tempo que liberta, não deixa de trazer dor. Pois conhecimento também gera dor e é preciso saber lidar. Levando a um final destruidor e surpreendente, Louise viveu um paradoxo que a levará futuramente a união com Ian e a dar a luz à sua filha que morrerá ainda na juventude. A sequência inicial e as constantes memórias de Louise desembaraçadas no decorrer da narrativa formam um sentido novo e desconstrói todas as expectativas do espectador. Aposto que levará muitos a rever o filme incontável vezes só para associar cena por cena e remontar as peças.
Louise transcendeu e o tempo não é linear em sua existência. De alguma forma, a força amor que Louise sentia pela garota está acima das linhas temporais e sobrevive intenso em seu inconsciente. Mesmo sabendo de todos os acontecimentos trágicos que virão em seguida, Louise opta em não mudar a ordem das coisas e viver novamente toda a intensidade desse sentimento. Ela entendeu que precisa aproveitar a maior quantidade de tempo que puder enquanto a garota estiver viva. Assim, podemos associar a personagem da filha de Louise como uma representação do conceito da vida. Todos nós temos a total consciência de que um dia vamos morrer, embora não fiquemos a vontade para falar sobre o assunto. Mas é ao abraçar esta consciência, ainda de acordo com a filosofia budista, é que podemos usufruir com vigor. Louise sabe que a filha tem pouco tempo, mas não abre mão desse tempo, mesmo que possa causar dor futuramente. É preciso saber aceitar a impermanência. Só isso tornará os seres humanos evoluídos, assim como os extraterrestres – é genial quando o ser que faz a revelação para Louise diz que seu companheiro está em processo de morte, estabelecendo uma ligação primordial com o arco da personagem.
Com isso, a jornada da nossa heroína se encerra de forma coerente a complexidade desse trabalho magistral. Inesquecível e necessário, A Chegada é um filme que compreende que num mundo dominado pelo individualismo, a única forma concreta de evolução é a evolução coletiva.
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